sábado, 22 de março de 2008

Indie Lisboa em Ponta Delgada


O documentário é um exemplo do estilo engagé em cinema. E, a propósito da extensão do Doc Lisboa, é sobre ele que nos debruçamos.
Engagé é o termo utilizado para designar um género cinematográfico que se caracteriza por ser cúmplice com o seu objecto, por tomá-lo como matéria a denunciar, a reflectir, a lembrar. Mais realistas ou mais ficcionados, os filmes engagé tomam como objecto acontecimentos reais, questões sociais, humanas, políticas, questões às quais não podemos virar as costas, embora tantas vezes o façamos.
A extensão do Doc Lisboa, decorrida no Teatro Micaelense de 20 a 23 de Fevereiro, abriu e encerrou com chave de ouro. “A Casa do Barqueiro”, de Jorge Murteira (Portugal, 2007, 60’), retrata o quotidiano de Paulino, o barqueiro da Amieira do Tejo, que assegura a travessia do rio para quem quer apanhar o comboio. Reclama uma casa com melhores condições que a barraca onde se abriga da chuva e do frio. A casa nova só aparece depois de Paulino ter uma trombose e se aposentar. “Agora já não há barqueiro e a nova casa continua por estrear.” O autor não precisa de entrevistar responsáveis autárquicos, como se de uma reportagem se tratasse, o importante é sentirmos o que vive dia a dia o Sr. Paulino, sermos capazes de nos colocarmos no seu lugar, e é isso que o autor consegue com uma câmara transparente, invisível para o público, uma câmara que não intervém.
Transparente é também a câmara de Tahani Rached, autora de “These Girls” (Egipto, 2006, 65’), uma viagem ao universo de violência, medo e liberdade das adolescentes (mulheres/mães/crianças) que vivem nas ruas do Cairo. O preconceito social vem de todos os lados e deixa-as numa situação marginal irreversível. Os seus depoimentos são de uma profundidade extraordinária, que revela uma reflexão sistemática e quase permanente sobre o sistema que as estigmatiza. O seu comportamento não demonstra qualquer tipo de desistência, amargura e tristeza sim, mas não submissão ou miserabilismo, pelo contrário, revela-nos a luta diária individual e do grupo. Para estas raparigas a câmara de Tahani Rached não é invisível, é sua aliada e, por isso, se expõem por completo à sua frente.
Esta forma não interventiva de filmar não é neutral, mas cúmplice e crítica, compromete-se com as raparigas e os Paulinos a contar a sua história, tentando com isso acordar consciências, abanar sociedades e criticar instituições.
SARA SEABRA

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