sábado, 22 de março de 2008

De expiação em expiação: um crime, várias leituras



Ian McEwan teve a ideia e pô-la em livro: uma rapariga de 13 anos, com uma imaginação fértil e uma propensão para a escrita criativa, comete um crime com as mesmas armas com que dissipa a impaciência, combate a inexperiência (próprias da idade) e faz a vida acontecer segundo o seu próprio gosto e expectativas: as palavras e o silêncio dotado de significação. Este crime é a resposta de Briony à forma como a vida real parece roubar o esplendor da ficção e terá repercussões trágicas que ela, anos mais tarde, tratará de exorcizar através de uma dinâmica de expiação auto-imposta.
Joe Wright transpôs a ideia de McEwan para o cinema e reproduziu bem a atmosfera histórica e ficcional da narrativa. Não se espera de uma versão cinematográfica simetria com a versão escrita. Espera-se tradução intersemiótica, isto é, transferência de uma mensagem de um sistema de representação para outro. À partida, o cinema constitui uma promessa de representação inultrapassável ao congregar três das principais espécies de imagens: visuais, verbais e acústicas. Alguns filmes conseguem realizar em pleno a representação nestes três planos. No meu entender, Expiação está perto de o conseguir plenamente, encontrando-se especialmente bem em termos de sonoplastia.
A sobreposição quase ao longo de todo o filme, com especial incidência nos momentos de maior intensidade dramática, do som de uma máquina de escrever, marcando com o seu compasso vivo e forte, a marcha do tempo e das emoções, é um dos aspectos positivos do filme. Aliás, toda a banda sonora aposta numa sonoridade sincopada que se adequa perfeitamente à sugestão de passagem irremediável do tempo, de fragmentação e perdas sucessivas que atingem Briony, Cecilia, os irmãos Quincey, Grace e Robbie. Reside aqui uma prova de como a versão cinematográfica consegue captar e transmitir um dos traços basilares do livro através dos seus próprios recursos, traduzindo, de forma irrepreensível, a presença envolvente da escrita criativa e da imaginação na qual ela se baseia, a sua interpenetração na realidade, a colisão de dramas reais com ficções inventadas e todas as consequências que daí resultam: a dissipação da fronteira entre a verdade e a mentira, o apelo permanente da criação, a indagação sobre a natureza humana.
É na personagem de Briony que estes universos se fundem e ampliam, agigantados pela imaginação exuberante de uma adolescente que, habitada pelo ímpeto criativo, é o eixo da revelação incompleta, da interpretação frustrada e da atracção pelo urdir ficcional. “Expiação” é também o livro dentro do livro com que a Briony dos últimos dias recria e dá a conhecer o passado. Justa omnipresença, portanto, da imagem sonora daquele que o filme elege como símbolo maior da ficção, em total sintonia com a mensagem de McEwan.
Igualmente bem estão as imagens visuais. Selectivas e poderosas representam os interiores e exteriores do período que rodeia a II Guerra Mundial. Não são comparáveis, porém, à força de algumas da imagens mentais que o livro suscita, como quando Briony fustiga as urtigas, por exemplo, ou quando, fragilmente humana, não está à altura da punição que escolheu para si na qualidade de enfermeira em tempo de guerra. Falta-lhe ainda a sequencialidade que, no livro, é natural e fluida. Mas é sobretudo ao nível das imagens verbais que o filme fica aquém da versão literária. Incompletudes que nos deixam com a nostalgia do que sabemos que já não virá e, muito especialmente, a profundidade da escrita de McEwan a abranger emoções, pensamentos, visões, angústias que dificilmente são traduzidas em imagens e diálogos impedem que Expiação, o filme, esteja no mesmo patamar de Expiação, o livro.
Todavia, algumas interpretações – destaque para James McAvoy (Robbie) e Saoirse Ronan (Briony adolescente) –, a banda sonora, a reconstituição dos espaços e, sobretudo, a homenagem ao poder da escrita, elementos nucleares do livro, estão no filme de Joe Wright e redimem-no de outros delitos, certamente pequenos em comparação com os aspectos positivos que apresenta.
É certo que um guião cinematográfico não pode nunca abarcar a totalidade de um grande romance. Por isso acabarei dizendo que, se não tivesse lido o livro, teria gostado muito mais do filme. Mas li-o. E isso fez toda a diferença.

Outro crime

Uma palavra final para uma outra espécie de crime: o péssimo funcionamento das salas Castello Lopes. No dia em que fui ver o filme, a sala não estava preparada para acolher os espectadores 5 minutos antes da hora prevista para a projecção. Inquiridos os funcionários da bilheteira e bar sobre se sempre haveria projecção, finalmente recordaram-se de que alguém reparava o pavimento dos degraus e um deles foi apressadamente à sala interromper os trabalhos. Apesar de resolvida esta situação, as luzes continuavam acesas e nada de novo se passava, porque o projeccionista estava em paradeiro incerto e de telemóvel desligado. Feitas as contas, o filme começou 20 minutos depois da hora anunciada. Uma espectadora teve de sair antes do fim do visionamento para cumprir com os seus compromissos e eu estive à beira de um ataque de fúria. Que expiação haverá para isto?
LEONOR SAMPAIO

Sem comentários: